A perplexidade de José  

ssim Mateus (11) dá início ao evangelho, “genealogia de Jesus cristo, filho de Davi, filho de Abraão”. Ao recorrer a uma genealogia para introduzir o personagem, o evangelista se insere em uma tradição que vem de longe: os beduínos do deserto, por exemplo, serviam-se de genealogias para transmitir seus complicados laços de parentesco.

          No uso bíblico, porém, a genealogia é muito mais um simples instrumento de estado civil: seu real objetivo não é tanto o de oferecer um relato de descendência, mas o de demonstrar, por meio de nomes áridos, uma história de Deus que continua. Já sabemos que Mateus pretende revelar como Jesus – através de José, que o adotou legalmente - tem o direito de reivindicar uma ascendência davídica.

E isso provavelmente no contexto de uma polemica com os judeus, cujos ecos também transparecem no evangelho de João (7,41 – 43), onde se lê: “outros diziam: porventura é Galiléia que há de vir o Cristo? Não diz a Escritura: ‘que o Cristo há de vir da geração de Davi e da aldeia de Belém, onde habitava Davi? ’ Houve, portanto, dissenção entre o povo acerca dele”.

              A genealogia termina com uma anotação surpreendente, que aponta a linha direta de descendência: “E Jacó gerou José, o esposo de Maria, na qual nasceu Jesus, chamado o Cristo” (Mt1,16). Jesus, porém, nasceu de Maria, mas não de José. Como se desenvolveram os fatos, então? E o evangelista prossegue, contando: “A geração de Jesus Cristo foi deste modo: Estando Maria, sua mãe, desposada com José, achou ter concebido (por obra) do espírito santo, antes de coabitarem” (1,18). O procedimento matrimonial dos hebreus desenvolvia-se em duas fases: primeiro a troca de compromissos diante das testemunhas, depois a transferência da esposa para a casa do marido. Do ponto de vista jurídico, a troca de compromissos, para todos os efeitos já eram o casamento: o homem tinha todos os direitos, já era matrimonial sobre a moça (normalmente se casava com a idade de doze ou treze anos, e uma eventual infidelidade da mulher assumia a gravidade do adultério). Enquanto não se transferia para a família do marido, porém, a esposa continuava vivendo – em geral por um ano – na casa dos pais. Foi justamente nesse período (“antes de coabitarem”) que Maria “achou-se ter concebido por obra do espírito santo”.

            O evangelista prossegue: “José, seu esposo, sendo justo, e não querendo difamar, resolveu repudia-la secretamente” (1,19). Em que sentindo o comportamento de José e considerado “justo”? De acordo com uma antiga interpretação, atribuída ao mártir Justino, José é justo porque, se por um lado observa a lei que obrigava o marido a desfazer o casamento em caso de infidelidade da mulher, por outro ameniza com sua magnanimidade o rigor da lei em si, evitando a difamação pública: José é capaz de reunir obediência e magnanimidade. A opinião de São Jerônimo é diferente: “José, conhecendo a castidade da Maria e estupefato com o que acontecera oculta com seu silencia aquilo cujo misterio ignora”. Ou seja, diante do dilema de saber, por um lado, inocência de Maria, da qual não duvida, e de outro de um fato que parece desmentir-la inexoravelmente, José opta por um comportamento que responde às duas exigências. Alguns comentaristas modernos preferem ainda uma outra interpretação: José esta a par (o evangelista não explica como) da intervenção de Deus e consequentemente considera ser seu dever afastar-se; o que está acontecendo é obra de Deus, não sua. De acordo com essa hipótese, o aparecimento de um anjo que diz: “não temas receber em tua casa Maria, tua esposa”, não teria o objeto de revelar-lhe a intervenção do espírito e a inocência de sua prometida, mas o de lembrá-lo da tarefa que o espera, que é a de dar um nome à criança e assumir a paternidade legal.

            Nenhuma dessas três hipóteses é inteiramente convincente. Em cada caso, porém, está clara a intenção do evangelista no que diz respeito a duas coisas: Jesus foi concebido por obra do Espírito Santo (portanto sua origem vem do alto e não apenas de Davi), e José lhe deu seu nome e o adotou legalmente.

 

 

Extraído da coleção:

POPPOVIC, P. Paulo. Jesus, Rio de Janeiro , v. 1, n. 1, p.3-4, 1986.

 

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